A (im)penhorabilidade de reservas financeiras em até 40 salários mínimos, à luz da jurisprudência do STJ

Por Publicado em: 11 de outubro de 2024Categorias: Análise

Durante um processo de execução, a maior preocupação do credor sempre está associada ao pagamento e, consequentemente, à penhora dos bens do devedor. Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro forneça uma série de instrumentos para que o exequente consiga satisfazer as suas pretensões, como a realização de pesquisas de imóveis, veículos e, até mesmo, de valores nas contas bancárias do executado, fato é que o próprio ordenamento determina que nem todos estes bens estão sujeitos à execução. 

A principal justificativa para a impenhorabilidade destes bens está associada ao respeito à dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF/88 (1), de modo a preservar condições econômicas mínimas de “sobrevivência” do devedor. Exemplo claro está previsto no art. 1º da Lei 8.009/90 (2), que dispõe que o imóvel residencial familiar é considerado um “bem de família” e, portanto, não está sujeito à penhora. Outras hipóteses estão listadas no art. 833 do Código de Processo Civil, que versa sobre a impenhorabilidade dos livros, máquinas, pertences que guarnecem a residência do executado e, um dos mais polêmicos, da “quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos”.

Embora a legislação seja, ao menos a princípio, clara, este último inciso já foi – e ainda é – alvo de muitas discussões, uma vez que o inciso prevê a impenhorabilidade apenas das quantias depositadas na caderneta de poupança, ao passo que muitas pessoas preferem investir em outros ativos, como títulos da fundos de investimento. Outro ponto controverso está relacionado ao fato de 40 salários mínimos ser um patamar extremamente elevado, quando considerado que mais da metade dos brasileiros não possui nem um salário mínimo em reserva (3) e que cerca de 78,8% das famílias brasileiras está endividada (4).

Quanto à extensão da impenhorabilidade, embora o inciso se refira apenas à poupança, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (5) é consolidada no sentido de que reconhecer que ela se aplica também às reservas em papel-moeda, na conta corrente e em fundo de investimentos – o que inclusive, no dia 07/10/2024, foi afetado pelo STJ, no tema repetitivo 1285, para a prolação de uma decisão vinculante sobre a questão. No que tange ao patamar, o Superior Tribunal de Justiça, já entendeu que, a despeito da previsão legal, valores inferiores ao limite podem ser penhorados, excepcionalmente, caso demonstrada a ocorrência de fraude, abuso de direito ou má-fé (6).

Além disso, em decisões ainda mais controversas, a Corte Cidadã também já decidiu pela possibilidade de penhora de valores inferiores ao piso legal, sob a premissa de que “o intuito da norma contida no art. 833, X, do CPC/2015 é apenas resguardar a existência de um patrimônio mínimo capaz de proporcionar uma vida digna ao devedor e sua família”(7). Inclusive, neste último caso, o valor, objeto de discussão, correspondia a R$3.442,06, e conforme consta expressamente na ementa do julgado, era utilizado para o pagamento de “compras com cartão, pagamento de contas de luz, gás, pix, saques e empréstimos”. 

Nota-se que a “evolução” jurisprudencial nesse sentido é, ainda, muito controversa e subjetiva, haja visto, por exemplo, que embora valores utilizados para o pagamento de contas de luz e gás sejam, inegavelmente, essenciais para garantir a dignidade da pessoa humana, o STJ utilizou tais premissas para justificar uma conclusão diversa, relativizando o art. 833, X, do CPC. Fato é que a ausência de parâmetros objetivos para as exceções ao limite de 40 salários mínimos é extremamente problemática do ponto de vista da segurança jurídica e, certamente, levará à prolação de decisões diversas nos tribunais e cortes do país. 

Depreende-se, dessa forma, que o ordenamento jurídico brasileiro, dentro de um processo de execução garante a impenhorabilidade de certos bens, com fundamento na garantia do mínimo existencial e na dignidade da pessoa humana. No que tange à impenhorabilidade de valores inferiores a 40 salários-mínimos, encontrados na caderneta de poupança, o STJ tem o entendimento consolidado de que essa impenhorabilidade pode se estender a outras reservas financeiras, como contas correntes ou fundos de investimento. A grande polêmica se dá para os casos de relativização do piso de impenhorabilidade, tendo em vista que a Corte Cidadã vem entendendo que ele pode não ser aplicado caso comprovado que o valor reservado não vise “garantir o mínimo existencial”, sem, contudo, estabelecer parâmetros objetivos para definir o que seria este conceito.

A conclusão a que se chega, a partir destas últimas relativizações do STJ, é que a ausência de parâmetros objetivos para a relativização do referido art. 833, X, do CPC, tende a trazer um cenário de insegurança jurídica e de contradição dentro dos tribunais brasileiros. Até que haja uma alteração legislativa do referido artigo, ou que haja um precedente vinculante sobre o tema, a tendência é de que a falta de clareza sobre a (im)penhorabilidade de valores de até 40 salários mínimos permaneça. 

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(1) Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…) III – a dignidade da pessoa humana;

(2) Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

(3) aqui.

(4) aqui.

(5) ProAfR no REsp n. 2.020.425/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 17/9/2024, DJe de 7/10/2024

(6)  AgInt no AREsp n. 2.624.140/DF, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 16/9/2024, DJe de 18/9/2024.

(7) AgInt no REsp n. 2.121.865/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/9/2024, DJe de 18/9/2024.

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Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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